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A cultura do hype

Excelente texto do crítico de cinema Pablo Villaça. Vale a pena dar uma conferida.

Marshall Fine é um homem jurado de morte. Odiado por centenas de fanáticos fundamentalistas, ele tomou a corajosa decisão de arriscar a própria vida ao cometer um ato de insanidade: criticar publicamente um item aparentemente sagrado para milhares de pessoas. Em instantes, sua cabeça era pedida pelos adoradores ultrajados, que não hesitaram nem mesmo em ameaçá-lo diante de todos com surras que o levariam ao coma e mesmo ao óbito. Pouco depois, o site no qual Fine publicara sua missiva venenosa encontrava-se fora do ar e a revolta provocada por seu texto alcançava proporções absurdas. Teria ele publicado ilustrações de Maomé? Teria chamado Jesus de “bastardo”? Teria comparado o Talmud aos livros de Stephenie Meyer?

Nada disso. Marshall Fine cometeu crime maior: deu uma cotação negativa para O Cavaleiro das Trevas Ressurge no Rotten Tomatoes. Em algumas horas, cerca de 500 comentários haviam sido publicados em resposta – grande parte destes dedicando-se a ofensas pesadas e às já citadas ameaças de morte.

O que há de estranho nisso, além da reação desproporcional à análise de um crítico sobre um filme de super-herói? Simples: o fato de que nenhuma daquelas pessoas  havia assistido ao filme defendido tão energicamente.

Esta é a cultura do hype: não basta ter o desejo de ver um filme; é necessário crucificar qualquer um que não compartilhe de sua opinião pré-formada sobre o longa. Isto não é fanboyzismo, é ser escravo do marketing, um funcionário não remunerado dos estúdios.

E reparem que não estou dizendo ser necessário detestar uma produção para ser atacado pelos fanáticos – e recentemente, ao escrever um texto positivo, mas nada entusiasmado, sobre Os Vingadores, recebi uma enxurrada de tweets, emails e comentários no Facebook sobre minha estupidez, minha ignorância com relação ao universo Marvel e, claro, minha óbvia necessidade de fazer sexo imediatamente. Além disso, muitos daqueles que riam das crepusculetes ao ouvi-las dizer que era necessário ler os livros para compreender os filmes acabaram cometendo o mesmo erro ao me acusarem de não amar o filme por não ter lido os quadrinhos. Houve até quem me acusasse de estar apenas querendo chamar a atenção, como se depois de 18 anos de carreira eu precisasse fabricar uma opinião artificial para ser lido.

Longe de ser um incidente isolado, isto se repetiu semanas depois com O Espetacular Homem-Aranha – com a diferença que, desta vez, os ataques começaram antes mesmo que os fãs tivessem tido a oportunidade de assistir ao filme. Sim, eles discordavam radicalmente de minha posição e dos meus argumentos apenas porque já haviam decidido amar o projeto. Além disso, para provarem minha ignorância e falta de capacidade como crítico, não hesitaram em apontar para o fato de que aprovei a trilogia X-Men original e os dois primeiros Homem-Aranha, claramente obras inferiores.

E que teriam me rendido massacres similares caso tivessem recebido críticas negativas à época de seu lançamento.

Esta é a natureza do hype: a obra em si não interessa, mas sim o contexto de seu lançamento. A lógica perversa e cada vez mais comum chega a impressionar pela previsibilidade: qualquer grande produção – especialmente se for parte de uma franquia ou de um universo já estabelecidos – é naturalmente antecipada com paixão cega por grande parte dos fãs, que já decidiram se tratar da melhor coisa que o Cinema já produziu mesmo antes de assistirem a um único frame da versão finalizada. Assim, quando as críticas começam a surgir, são recebidas com orgasmos múltiplos e júbilo caso sejam positivas e com ódio irracional se apontarem falhas na obra-prima.

Semanas depois, vem a segunda fase: o backlash, uma onda negativa que se opõe aos amantes fanáticos que a antecederam. Os integrantes deste movimento atacam o longa, acusando-o de ser “superestimado” e fazendo pouco de seus admiradores. Assim como estes, porém, os haters se limitam a argumentações vagas sobre a obra em si, optando, em vez disso, pelo ataque aos fãs. Mais algumas semanas e o ciclo se repete até que, na maior parte das vezes, o filme que despertou tantas brigas acaba sendo esquecido por todos. (Mesmo. Desde que O Espetacular Homem-Aranha foi lançado, quantos posts ou tweets ou textos você leu sobre Os Vingadores – que, semanas antes, era onipresente na Internet? E onde estão aqueles que massacraram os críticos quando Transformers 3 foi recebido com desprezo por estes profissionais? Quem mais assiste a Transformers 3 hoje em dia, aliás?)

O lamentável em todo este ciclo é que basta uma análise rápida para perceber que algo fundamental foi deixado de fora: o filme em si. Toda a discussão, afinal, gira em torno não do longa, mas das expectativasem torno deste e da antipatia que um tipo de fã sente pelo outro.

E enquanto todos se agridem, os estúdios correm alegremente rumo ao banco.

Cabe, aqui, lembrar o que Pauline Kael escreveu há tantas décadas: “Nas Artes, a única fonte de informações confiável é o crítico; o resto é Publicidade”. Ela não queria dizer com isso, claro, que você deve encarar a palavra do crítico como Evangelho; apenas que a discussão promovida por este é movida por um interesse genuíno pelo filme em si, não pelo dinheiro que você vai deixar nas bilheterias. E pensar sobre a Arte só é possível se você ignorar o contexto do marketing e concentrar-se na obra.

Se fizermos isso, todos cresceremos como cinéfilos e seres humanos. Já a troca de insultos motivada pelo simples hype nos conduzirá apenas à mais profunda ignorância.

Dito isso, espero gostar do novo Batman. Afinal, quero conhecer meus netos.

Fonte: www4.cinemaemcena.com.br/diariodebordo